Bob
Ainda pequeno chamaram-no Bob.
– Nome curtinho é mais fácil para ele entender. – Ouviu daquela que aprendeu a chamar de mãe.
A única da qual conseguia se lembrar.
Antes disso só o nada.
Gostava de ser Bob.
E de brincar no quintal, perseguindo borboletas e baratas, das quais defendia sua casa com a paixão de quem protege a fortaleza de um castelo. Talvez não propriamente um castelo, mas ainda assim, aquele ao qual acostumou-se a chamar de lar.
– Pega,Bob. Quieto, Bob. Cuida, Bob. – E ele sorria agradecido, com olhinhos de criança, pelas sobras do almoço que comia, abanando o rabo e rosnando, a todo aquele que ousasse se aproximar de seu portão. O único do qual se acostumara a zelar. O limite entre sua vida e o mundo lá fora. Um desconhecido universo provavelmente cheio de carteiros, lixeiros e de ousadas fêmeas que, às vezes, metiam os focinhos por entre as estacas de madeira.
E Bob gostava assim.
Gostava de ser Bob, deitado sobre o puído cobertor que aprendera a dividir com pulgas, sarnas e carrapatos. O único que lhe cabia, durante toda sua curta existência de cão.
Vez em quando, um osso.
Vez em pouco, um carinho daquela que tanto amava.
Vez em nunca, chuva forte, e ela o deixava dormir no tapete da soleira da porta.
Vez em sempre, o abuso, e ele a via chorar e maldizer baixinho aquele a quem se acostumara igualmente, a chamar de pai. O único que jamais tivera. O único do qual seu aguçado instinto olfativo lhe ensinara a se guardar.
– Andou bebendo? Contas vencidas! Vagabunda! Despedido. – Palavras desconexas chegavam ao quintal, deixando seu fiel coração de cão estranhamente apertado. Não entendia nada disso de contas vencidas, mas sentia no dorso arrepiado cada sussurro do lado de dentro. E conhecia o gosto de cada lágrima.
E era nesses dias que ela se sentava a seu lado. Passava a mão em seu pescoço e deixava-se abandonar ao amigo, que conhecia sua química como ninguém. Composição perfeita entre sal e água, provada na ponta da língua. Chorava copiosamente e Bob a entendia como nenhum outro. Conhecia o gosto de sua dor. E o perfume de flores trazidas junto ao fluxo que vertia dos olhos.
Uma única vez…
O som da porta batendo.
Malas.
A coleira desamarrada do postinho.
A poeira e o cheiro de queimado do pneu cantando na esquina.
O silêncio.
O nada.
Noite alta, Bob voltou. Perseguira o carro por mais de… Bob não sabia contar.
Só as bolhas em seus pés impediram-no de correr mais rápido para o lugar que tanto conhecia. Aquele que se acostumara a chamar de ninho.
Silêncio.
O portão aberto foi o único a recebê-lo. E adormeceu, aliviado, talvez, por estar em seu lugar. Logo tudo ficaria bem. A chuva forte caiu, mas ninguém apareceu para deixá-lo ocupar a soleira. O capacho já não estava mais lá.
Dessa vez… Nunca mais.
Nunca o resto do almoço misturado à ração de segunda linha. Não mais os banhos de mangueira gelada, dos quais fugia, para em seguida sacudir-se grato por se livrar um pouco do peso dos parasitas. Nunca mais um só ruído dentro da casa. Tudo estava quieto. O mundo que conhecia sumira entre a poeira do antigo Chevrolet caindo aos pedaços. Só as pulgas pareciam não o haver abandonado.
Vez em quando, alguém passava e mexia com ele.
Vez em pouco, alguém lhe atirava um pão.
Vez em nunca, já longe da casa que ainda insistia em chamar de lar, uma mão estendida sob seu focinho para descobrir se o cão com costelas à mostra mordia ou não.
Vez em sempre, o abuso, e ele se esgueirava por cantos, a fim de livrar-se de vassouras e pedaços de pau.
– Sai vira-lata! Fora Guapeca! Xô, chispa! – Palavras desconexas chegavam a seus ouvidos, deixando seu infantil coração de fera estranhamente confuso.
Não entendia em que momento havia deixado de ser Bob. Mas sentia na ponta da orelha machucada uma dor nova e desconhecida. A saudade, aos poucos, dava lugar ao temor por seres humanos.
Uma única vez…
Sentada na calçada a seu lado, ela lhe oferecia um pote cheio de água. Desconfiado, sentiu o leve toque em sua nuca e virou-se tentando morder.
– Ele está com medo… Não precisa gritar, Maria… – A mãe ensinava à filha. – Não coloque a mão aí, que ele está dodói e pode machucar você.
Agora um idoso, chamavam-no Príncipe.
– Nome difícil para ele entender. – Ouviu daquela que aprendeu a conhecer como amiga. A única da qual conseguia se lembrar.
Antes disso, só o nada.
– Pega, Príncipe. Pula, Príncipe. Dá a patinha, Príncipe. – E ele demorava a entender que era com ele que falava aquela criança que lhe dera o nome em homenagem a um desenho na Televisão. Em seu coração ainda se sentia Bob. Mas sentava a seu lado e agradecido tentava sorrir, com apertados olhinhos de velho, encarando uma tela na qual nada via.
Nesses momentos, de mansinho, ele começava a se transformar em Príncipe. Finalmente encontrara o castelo para, aos poucos, se acostumar a chamar de lar.
Nunca entendeu, porém, o motivo…
Ninguém nunca mais o chamou de Bob.
***